Teoria x Prática: Pagando o Pato
Sebastião Buck Tocalino, 10 de julho de 2014
Existe pelo menos
um caso exemplar bem conhecido envolvendo resultados práticos inesperados e falha
na teoria de Albert Einstein. O genial físico, prêmio Nobel e autor das teorias da relatividade especial e
geral, não aceitava bem toda aquela probabilidade e incerteza que a mecânica quântica preconizava. Dizia ele
que "Deus não joga dados!" e criou uma experiência teórica (mental, pois não tinham como colocá-la em
prática na época) mostrando que certas postulações da mecânica quântica não poderiam fazer sentido. Embora
sua argumentação teórica fosse cheia de bom senso, uma vez colocada em prática, anos mais tarde, a
experiência só serviu para mostrá-lo equivocado e consolidar ainda mais a mecânica quântica como ciência. O
paradoxo de EPR (Einstein-Podolsky-Rosen), como ficou conhecido, demonstrou que a teoria bastante
lógica de Einstein, não se verificava na prática. O assunto da mecânica quântica tem implicações tão
fantásticas que muda nossa percepção do que são vida, universo e realidade, mas quem quiser saber mais,
poderá procurar em outra fonte. O que importa para nós nesse momento é a lição de que,
por vezes, na
prática, a teoria é outra!
Nos momentos em que a economia custa a mostrar vigor, é compreensível a intenção dos Bancos Centrais de
baixar a taxa de juros próxima ou abaixo da inflação. Retornos reais muito baixos ou até mesmo negativos
incomodam o capital estacionado na renda fixa. Teoricamente, se esse dinheiro se movesse para fora dali,
gerando negócios, o dinamismo econômico poderia ser recuperado na base do tranco. Mas, na prática, isso só
resultaria se os investimentos em capital fixo, físico e humano fossem de fato estimulados, expandindo ou
criando novos negócios, abrindo microempresas, aumentando o comércio, a produtividade, a geração de empregos
e a capacitação técnica de mão de obra.
Sim,
na teoria tudo pode parecer justificável... No entanto, investir em capital fixo em tempos de
crise é complicado! Exige um grande comprometimento do investidor, impondo-lhe a imobilização de seu capital
por um longo prazo, justamente quando o cenário mostra-se mais confuso e desfavorável. Em momentos de muita
insegurança é difícil assumir compromissos financeiros para um grande horizonte de tempo. Perde-se o jogo de
corpo para a adoção de um eventual plano B, caso as coisas se deteriorem ainda mais. Quando o cenário
econômico e financeiro é pessimista, ou no mínimo bastante imprevisível, o investidor pode se mostrar mais
avesso ao risco de permanecer assim engessado do que à certeza de alguma perda para a inflação na renda
fixa. É aí que a teoria dos juros negativos (reais ou nominais) encontra seu calcanhar de Aquiles.
No entanto, juros reais negativos vêm sendo insistentemente aplicados por importantes líderes da política
econômica internacional, sob a argumentação de serem supostamente benignos para a economia em crise.
Na prática, eles confiscam parte da poupança das pessoas mais simples e conservadoras, ou seja, da
maioria dos poupadores. Nem por isso conseguem aumentar os investimentos produtivos em capital fixo e
capital humano. Não só impõem essa espécie de taxa de confisco, como um imposto incidindo sobre a prudência
da população, mas também subsidiam a alavancagem. Juros irrisórios estimulam o financiamento de apostas
especulativas (não produtivas) de investidores mais arrojados e bem relacionados. O resultado é o
favorecimento e aumento na lucratividade de especuladores que gozam de bom contato com bancos e fontes de
financiamento! O investimento em carteira (ações, commodities, ativos ou derivativos) é de tal forma
estimulado, que a própria volatilidade se reduz com a inflação dos preços destes, aumentando a atratividade
e alimentando a fase inflacionária da bolha. Mas ao fim da costumeira euforia terminal, são os últimos a
chegar que se queimam, pagando caro e segurando a batata quente no estouro das bolhas.
Em um
texto anterior sobre as taxas de juros nos
EUA, usei o gráfico do preço do petróleo em relação aos juros reais nos EUA, pois ilustra muito bem o
resultado prático dessa argumentação teórica falha. A perda de parte da poupança alocada nos títulos
públicos pelos poupadores na década de 1970 não gerou benefício para a economia norte-americana. Mas os
estragos não ficaram apenas nesse prejuízo dos poupadores. O agravante foi justamente o estímulo que aqueles
juros tão baixos representaram para a especulação alavancada e a perda de poder econômico da população.
Na década de 1970, uma série de fatores propiciou a crise do petróleo. Em 1973, os países árabes da OPEP
aumentaram o preço do petróleo em protesto ao apoio dos Estados Unidos a Israel durante a
Guerra do Yom Kippur. Em
1979, a
revolução
islâmica no Irã, com a deposição do Xá
Mohammad Reza Pahlavi, desorganizou o setor produtivo iraniano. A partir de 1980, a
guerra entre Irã e Iraque
abalou a produção desses dois importantes produtores de petróleo. Se tais fatores não bastassem, a excessiva
especulação financeira fomentada pelos juros baixos ajudou a inflacionar as cotações dessa commodity.
Marc Rich (ou Marcell David Reich, 1934-2013) foi um ótimo exemplo disso. Esse especulador causou uma
expansão enorme do mercado de petróleo na década de 1970. Até então, esse mercado era dominado pelas já
estabelecidas empresas de petróleo e, tradicionalmente, baseava-se em contratos futuros de longo prazo. O
"Rei do Petróleo", como Marc Rich passou a ser chamado nos anos 1970s, mostrou que, com menos dinheiro,
menos garantias e mais financiamento de instituições financeiras, era possível se alavancar muito e atuar
com força nesse mercado, a ponto de competir com as próprias empresas de petróleo. Ele fez fama e fortuna se
alavancando, especulando e ajudando a inflacionar o preço da
commodity. Mas a fortuna de alguns
representou o drama de muitos! As altas dos combustíveis, dos custos de transporte, da energia e das
matérias primas para a indústria prejudicaram a maior parte da população. E a crise econômica acentuou-se e
prolongou-se.
O gráfico abaixo mostra os juros reais negativos favorecendo a especulação e as altas de duas
commodities diferentes:
petróleo e
ouro. O padrão é flagrante em ambos os casos:
O aumento da especulação com a commodity metálica, inflacionando seu preço, não traz benefício algum para a
economia, pelo contrário. Tanto assim que, em 5 de abril de 1933, o presidente Franklin D. Roosevelt assinou
um decreto (
Executive Order
6102) proibindo a posse de ativos financeiros em ouro (moedas, barras e títulos ou certificados de
posse do metal precioso).
A alta nos preços do petróleo também, evidentemente, só pode atrapalhar ainda mais a economia. Com um
cenário já cheio de insegurança, a elevação dos custos com insumos industriais, direta ou indiretamente
ligados ao petróleo, e todas as despesas com combustíveis para o transporte e a distribuição de produtos
industrializados só dificultaram ainda mais qualquer retomada econômica. Mesmo a mobilidade cotidiana da
população foi prejudicada.
Atualmente, além de baixar a taxa de juros básicos na Zona do Euro para 0,15% ao ano e oferecer até € 400
bilhões de Euros em financiamentos baratos por quatro anos, o Banco Central Europeu ainda coloca uma
taxa
negativa de -0,1% sobre depósitos bancários. A intenção é encorajar a oferta de crédito para os
negócios do setor privado e evitar qualquer dinheiro parado em bancos. É a primeira vez que um grande Banco
Central impõe uma taxa
nominal negativa sobre depósitos. As taxas
reais costumam se tornar
negativas apenas quando a inflação se mostra maior que os juros nominais baixos (porém, ainda positivos).
Essa tática já havia sido adotada por bancos centrais menores, como os da Suécia e Dinamarca. Os dois países
não fazem parte da moeda única. Na Suécia, os efeitos foram mínimos. Na Dinamarca, ocorreu de fato uma
desvalorização da Coroa Dinamarquesa, mas o desempenho dos bancos foi obviamente prejudicado.
Taxas
reais negativas podem acontecer em determinados momentos, mas certamente são sinais de grande
estresse econômico. De fato,
é essa a situação atual, por mais que muitos queiram acreditar numa
iminente recuperação da economia global! Um eventual ônus sistêmico de qualquer desempenho desastroso do
setor financeiro é um risco que Mário Draghi decidiu assumir. Na atual conjuntura, fica difícil encontrar a
ideal
bala de prata.
A ameaça de uma persistente
deflação na
Europa é séria! Estamos próximos do momento em que só restará a impressão de Euros como opção (
quantitative easing, ou QE).
No entanto, toda essa história acaba configurando um ciclo vicioso.
Fomentar o crédito nessa altura lembra bastante a cultura francesa do
Foie Gras. Para quem
não conhece, a "
iguaria" francesa é feita com o fígado gordo e hipertrofiado (esteatose hepática)
de gansos e patos. Os animais são alimentados à força, com alimentos literalmente
socados goela
abaixo.
O mesmo parece se passar com a oferta de dinheiro na economia.
O interessante é que a crise que ferveu em 2008 (com as hipotecas
subprime), e continua cozinhando
em banho-maria, ocorreu justamente por conta da excessiva e pródiga oferta de financiamento ao setor
privado. Será realmente fantástico se esses prolíficos Bancos Centrais conseguirem curar a já enferma
economia,
evitando problemas e efeitos colaterais ainda piores mais adiante, usando aquele
mesmo
veneno que já quase matou o doente:
uma grande oferta de dinheiro!
Se forem bem sucedidos, esses
gênios financeiros estarão provando que a teoria de Einstein mais uma
vez falhou em sua lógica. Afinal, o físico já havia dito que "
não é possível solucionarmos nossos
problemas adotando o mesmo raciocínio que usamos quando os criamos!"
Esperemos para ver quem vai pagar esse pato...